quarta-feira, 28 de março de 2012

O trago da Ibiracema


Um cenário que não sai de minha mente e que por diversas vezes testemunhei, foi a passagem de centenas de burros carregando barriz de cachaça pela Av. José da Cunha, esses grandes comboios de burros eram vistos passar quase que diariamente. Eles eram responsáveis pela logística da famosa cachaça Ibiracema produzida pela Destilaria Imbira. Viajavam léguas e léguas para escoar a produção da aguardente de Frei Paulo. Quem chegava à cidade, logo ali no Buril já sentia o cheiro forte do caxixe, esse é o dejeto da produção da aguardente de cana. Ali no alambique de Seu Antônio de Germino havia dois grandes tanques de caxixe bem na beira da pista. O cheiro que muitos detestavam era uma espécie de “seja bem vindo a Frei Paulo”. Na verdade eu gostava daquele cheiro e tinha o alambique como um dos meus locais preferidos para meus passeios. Mas evitava o trago da Ibiracema.
Ali era um ambiente diferente, a indústria emitia aromas maravilhosos, o cheiro da lenha aquecendo a caldeira e a própria arquitetura do lugar era bem interessante. No caminho passava pela casa de Zé das Cachorras, um sujeito curioso que morava ali pouco depois do corte, do outro lado ficava a fazenda de Seu Liro, outra figura folclórica de Frei Paulo, pai de Zé de Liro e de Jidenal que foi vereador de Aracaju. A fazenda de Liro muito vistosa.
No alambique via-se a movimentação constante dos empregados. Levando os insumos e destilando a cachaça. Primavam sobretudo, pelo cuidado do seu restilo e pelo tempo de estocagem. Havia uma enorme torre de destilação toda em inox, que tinha capacidade para processar 1500 litros por hora. Do lado um deposito com quatro enormes dornas, todas em legítimo carvalho com capacidade para armazenar 45 mil litros de cachaça cada uma. Antigamente a água encanada usada pela população vinha do alambique. Era uma água salobra, que só servia para tomar banho.
Fernando, um dos filhos de seu Antônio passava o dia transportando cabaú num caminhão pipa. A indústria tinha um deposito numa casa que ficava ao lado da Bodega de Salomão, onde armazenava milhares de litros da matéria prima. Sempre que o caminhão terminava de descarregar a meninada se aproximava e passava o dedo na saída para lamber o cabaú, ás vezes a gente comia ele com farinha. Não esqueço nunca o gosto. Era uma boa iguaria para se provar e os meninos de Frei Paulo da minha época pareciam viver em função de comida. Eramos um bando de famintos sempre procurando algo para comer.
Provei algumas vezes a cachaça, mas nunca fui chegado. Era muito forte. Às vezes eu pegava um pouco colocava no chão, riscava o fósforo e por alguns instantes ficava a contemplar a chama azul, resultante da combustão devido a grande quantidade de álcool que havia no produto. Quem ia ao alambique não saia sem ganhar um litro ou dois da cachaça, lembro bem do rótulo, era meio avermelhado e estampava a figura de uma índia muito bonita. A cidade tinha muitos cachaceiros e muitos se perderam por esse caminho tortuoso. O da manguaça.
Nos dias de feira víamos Pelego, Didí,Cidi, Barroca e outros empregados das fazendas, encherem a cara de aguardente e muitas vezes ficarem apagados nas calçadas. Eu achava Barroca o mais engraçado de todos os biriteiros, ainda lembro-me do seu jeito brincalhão e despretensioso, sabia como lidar com a molecada. Era zuado por todos, mas sua reação era só risada. Um sujeito de cuca fresca, sempre sorridente e de cara cheia. Ele era empregado da Fazenda de Batista Felix. Sua morte foi triste, aconteceu a caminho de sua casa, ele morreu afogado em uma poça d’água bem pequena, estava tão embriagado que não conseguiu evitar o pior. Lembro de Luis Alves fazendo seu caixão, era o mais pobrezinho que existia na sua funerária. No cortejo para o cemitério, só meia dúzia de gatos pingados acompanhava, cheguei a chorar quando vi aquela triste cena.
A cachaça de Frei Paulo foi símbolo de riqueza para uns e infortúnio para outros. Milhares de litros saiam diariamente para as cidades da Bahia. A fama da Ibiracema correu todo o Nordeste, mas por conta de desavenças familiares a indústria acabou fechando as portas. Secaram os tanques de caxixe e os empregados da Destilaria Imbira migraram para outras atividades. Mas uma coisa é certa: a cachaça de Frei Paulo fez história com a fabricação desse produto genuinamente brasileiro.

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