sábado, 25 de agosto de 2012

O ladrão de ossos


São os ossos do ofício. A vida naquela altura nos mandava ir à luta . Era um desejo de vencer que nos fazia sair à procura de um meio de ganhar a vida. Haviam poucas opções, é claro, lavar carro era manjado e ninguém fazia isso com a rapidez e perfeição de Airton de Nicinha. Por isso, tinha sua clientela garantida causando inveja. Carros refletiam seu brilho e ele com sua técnica apurada conseguia ótimos resultados, colocava querosene na água . Eu parava para observar, junto com a água o óleo escorria no para-brisa mostrando as cores do arco Iris. Algum tempo depois, aparecia o dono do carro e pagava pelo serviço com uma nota de dez mil cruzeiros. Egoista e faminto devorava generosas fatias de bolo de leite com refresco de maracujá no Bar de Natan. Lavar carros, era um negócio altamente lucrativo, mas também muito competitivo. No posto de Zé Onofre na Praça da Feira se reuniam os feras do dique: Paulo Bôto, Buchinha, Dujer e o irmão de Pimentinha.
Do alto dos meus treze anos pensava em namorar , ter carro e poder luxar com as roupas da moda: calça boca de sino, sapato cavalo de aço e blusa cacharrel. Nesse tempo de férias, a cidade simplesmente fervilhava com seus bailes no clube, eram embalos delirantes ao som de Los Guaranis . Meninas de fora passando as férias em Frei Paulo, era tudo de bom. Onde achar o vil metal para dar vazão a tamanha vaidade. Um dia sentado no obelisco da praça, passei a analisar as formas mais simples de ganhar dinheiro. Catar cobre nos monturos àquela altura não fazia mais o menor sentido. Foi quando ao ver passar pela praça um caminhão carregado de ossos, vi ali uma chance real de empreender um negócio altamente lucrativo. Não dormi direito naquela noite , rolei na cama não vendo a hora do dia clarear para iniciar meu trabalho. Nem bem os primeiros raios de sol adentraram meu quarto , acordei com a sinfonia dos vasos de leite da casa de seu Batista. Pulei da cama e naqueles deliciosos meses de férias dava para fazer uma fortuna em ossos , quem sabe juntar um caminhão deles. Nem sequer pensei quem compraria a tal carga nem para que aquilo serveria.
Mas movido pelo empreendedorismo puro e simples, escolhi o monturo que ficava ao lado do sítio de seu Luizinho para guardar meu tesouro. A primeira coisa que fiz foi um círculo de pedras para deixar bem claro que aquela mercadoria tem dono. Iniciei o árduo trabalho e catei ossos pelos terrenos da redondeza, transportava-os em um bacia com fundo de madeira que peguei na casa de vovó. Já no primeiro dia vi aquela pequena montanha de ossos e me orgulhei. No sertão osso não é problema tem muitos, descobri carcaças inteiras de animais, alguns ossos eram tão branquinhos que de longe lembravam marfim. O dia inteiro catava e juntava esses ossos, Maria de Iraci vendo aquilo, ficou abismada e questionou aquela minha obstinação pelos ossos. Não dei detalhes sobre meus planos. O esconderijo era no fundo de sua casa.
Não dei a menor importância e prossegui na empreitada. Do Alambique, ao Curral do Açougue, catei todos os ossos que vi pela frente. Os dias passaram e eu cada vez mais rico em ossos , nem jogava mais bola, nem caçava mais passarinho, só tinha olhos para os meus ossinhos. No fim do dia, tombava exausto. Quando aquela montanha se formou , despertou a inveja e a cobiça dos larápios. Não deu outra. Um dia, ao chegar ao monturo flagrei um tal de Baiôco, que morava na Rua de Itabaiana, roubando meus ossos. - Ei isso aí tem dono, gritei. Tentei defender o que é meu, mas o cara era grande e metido a brabo, me deu um empurrão e disse que aquilo não tinha dono. Chorei muito ao ver toda aquela riqueza sendo pilhada por aquele malfeitor. Os dias de suor e sonhos, foram todos desfeitos naquele instante e ele indiferente enchia a carroça e rumava para vender meus ossos não sei a até hoje a quem.