quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A fome canina

Da minha geração todos os amiguinhos sempre foram bem dotados daquilo que chamamos de fome canina. Claro que nossos pais faziam a feira no sábado e o almoço invariavelmente tinha carne de boi cozida e galinha, acompanhada da dupla imbatível feijão com arroz. Mas para quem comer em casa? Para nossa turma era um sacrifício, por isso, eramos punidos com a ingestão de remédios horríveis como o Biotônico Fontoura e o intragável Emulsão Scott feito com óleo de fígado de bacalhau e associações. Haviam entre nós, mas eram raras as exceções, aqueles que apreciavam a bebida. Assim como primitivos na savana enfrentando intempéries e animais selvagens, vagavamos obstinadamente pelas matas e sítios, hora caçando, hora pescando, outras vezes invadindo os sítios e dilapidando as plantações. Era uma fome insaciável que nunca tinha fim. Alheio aos perigos, espingardas de sal grosso e outras ameaças nos embrenhavamos até nas mais obscuras grutas para capturar gias de peito, prevalecia a lei do instinto. E para quem achava pouco as léguas e léguas percorridas em busca de alguma guloseima, cada uma no seu devido tempo. Tempo de caju e castanha, de manga, de cajá, de umbú , de jaca , milho etc, ou pescarias nos açudes e tanques e caçadas com baleadeiras, tal qual cães vira- latas ainda rebeiravamos o curral do açougue nas sextas em busca da benevolência de alguma fateira que nos oferecesse pedaços de fígado e rins bovinos, assados com sal e devorados ali mesmo com muita avidez. Um dia, o grupo reunido rumou para a Chã, ali havia uma unidade da CSL, aproveitando um descuido da vigilância, naquele dia não havia vigia de plantão, entramos e munidos de copos e caçarolas improvisadas, sob as ordens do faminto mor, Airton de Nicinha passamos a degustar um produto esquisito que pela consistência era pura gordura láctea, provavelmente para fabricação de manteiga, armazenada em grandes cilindros metálicos, ainda sorvi uns 200 ml daquela comida repugnante e logo enjoei. Ao chegar em casa à noite não consegui nem abrir o portão fui acometido de uma tremedeira terrível, algo muito estranho que durou uns quinze minutos, depois passou. Os cinco dias que se seguiram não comi nada só bebia água, tive uma caganeira que durou 5 dias, fiquei magro e com olheiras. Só melhorei com comprimidos de Enterivioforme. Mas logo estava de volta com a turma de famintos atras de mais comida. Havia um hábito na época de se promover um cozinhado, se não convidasse era motivo de inimizade. Comemos de tudo e de todos, mas quando nossos pais chamavam para a mesa , ninguém queria comer nada. Na farmácia as mães preocupadas se queixavam a Faroaldo ou Paulinho. “ Não sei o que fazer para acabar com o fastio desse menino” E os meninos de bucho cheio de tudo que Deus deu. Um dia no bar de Epitácio, um funcionário da Odebrecht trouxe uma enorme gibóia e ofereceu para quem quisesse degustar o exótico banquete. Para abrir o apetite, Zé Pequeno providenciou um litro de aguardente que no seu interior continha outra serpente, todos nós bebemos e comemos cobra naquele dia. Muitos curiosos com receio de comer ficavam só na vontade. “Que gosto tem?” a resposta era sempre a mesma “gosto de galinha” Assim também falou Bufa na praça no dia que cozinharam um saruê. Todos afinal concordaram, tinha mesmo gosto de galinha. Boa justificativa para matar essa fome canina.

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