domingo, 14 de outubro de 2012

Relíquia de Família

Todos os anos de minha infância presenteava a matriarca com um cachorro de louça que comprava com algumas moedas na loja de Lilí. Já associava a data àqueles bibelôs que enfeitavam o centro, uma mesinha de vidro que fica no meio da sala que não serve para outra coisa senão, para tropeçar. Ou para alardear quando se chega tarde em casa. Lembro de cada detalhe de nossa humilde casa no Beco do Talho. Ou melhor, Rua Marechal Florentino Menezes. Tinha uma vistosa sala de jantar toda em fórmica branca que quando nova era proibido usar. Servia para bater retratos e encher os olhos de nossa memória em álbuns que dona Helena guarda até hoje. Era uma casa de pobre, mas que tinha certo conforto. Uma TV preto e branco da marca Zenith e uma radiola. A TV apontava para a rua como se dissesse vejam-me estou aqui. Poucos tinham o privilégio desse eletrodoméstico raro naqueles tempos difíceis. Na salinha da frente quadros e jarros bonitos de real valor artístico como um pequeno, porém notável, onde em uma das faces tem um retrato da matriarca e no verso a feliz prole da família Bastos composta de três mulheres e um homem. Eu naquela altura não havia nascido, mas apesar de toda minha traquinagem atravessei gerações e gerações mantendo intacta essa relíquia. A casa no Beco do Talho não tinha luxo algum, mas dava a sensação de estar em um verdadeiro lar. Ali morei praticamente sozinho por toda a infância. Meus irmãos estudavam durante a semana no colégio agrícola e minha mãe, tinha nas costas um mundo como o de Átila, tomando para si toda a responsabilidade da criação e educação dos filhos, batalhava incansavelmente atrás de um balcão numa pequena bodega na Rua de Itabaiana. Nos sábados, eu a ajudava em outra bodega que mantinha na feira de Frei Paulo. D. Helena atravessou anos nessa luta e quase não tinha tempo para si mesmo. Mas sempre foi cuidadosa e sua casa era ornada com jarros e quadros e toda sorte de rococós. Foi nessa batalha que construiu a bonita casa que mora hoje na Praça Capitão João Tavares. Por isso ela é uma mulher muito respeitada em Frei Paulo. Nos finais de semana a casa estava cheia,Ana Selma, criada com a Vó, logo casou. Mas Erta e Heleusa eram moças muito bonitas e os namorados apareciam nos fins de semana e ocupavam sempre a salinha da frente, ali se ouvia músicas muito boas, havia um compacto dos Beatles de papel que tocava Help. Canções de Caetano, Gal Costa e Gilberto Gil, isso era moda naquele limiar dos anos 60, tempos dourados que tanta saudade deixou naquela geração que acreditava piamente que iria mudar o mundo. Não achem estranho se as manifestações de rebeldia, herdadas de Woodstock, pelas plagas sertanejas tenha encontrado adeptos nos moços interioranos com suas longas cabeleiras e girias pueris tipo "morou bicho". Minha Mãe na cozinha preparava pratos especiais para essas ocasiões e entre momentos felizes nossas vidas se encaminhava para seus destinos. A impressão que se tinha, é que aquilo duraria para sempre, como os jarros, os quadros e as amareladas fotografias que hoje servem de combustível para o motor da memória, lembranças de uma vida. Ainda ecoa na memória, os aromas, as cores e, sobretudo um ruidoso desejo incontido de eternidade. Quantos aos chorrinhos de louças nenhum sobrou, pois já que era proibido de tocar os jarros de inestimável valor aristocrático. Destrui a todos enfileirados no muro do quintal com minhas certeiras pedradas de baleadeira. Tive muita vontade, mas, não ousei fazer isso com os jarros.

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